Justiça dá herança digital a familiares
Decisões do Judiciário têm determinado que conteúdo afetivo ou econômico deixado no meio virtual integra o espólio e vai à sucessão
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O Judiciário tem garantido a familiares o direito à chamada herança digital. Em recente decisão, a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) liberou a uma mãe o acesso aos dados do ID Apple da filha morta para a recuperação de fotos e vídeos no celular.
O entendimento foi o de que, mesmo sem uma legislação específica, esse tipo de patrimônio, como pode ter conteúdo afetivo ou econômico, pode sim integrar o espólio e ser objeto de sucessão.
Segundo advogados, decisões como essa estão cada vez mais comuns, mesmo que ainda não haja um consenso sobre o tema, pela falta de previsão legal — algo que a reforma do Código Civil, em trâmite no Senado Federal, se aprovada, deve resolver.
Quando o argumento patrimonial é demonstrado, a autorização tem sido concedida. Casos que envolvem perfis de redes sociais rentáveis — situação frequente entre artistas, escritores e influenciadores — ou recuperação de criptomoedas e milhas aéreas.
Os julgadores também levam em consideração o aspecto afetivo. No TJ-SP, esse ponto foi analisado pelos desembargadores.
“Não se verifica justificativa para obstar o direito da única herdeira de ter acesso às memórias da filha falecida, não se vislumbrando, no contexto dos autos, violação a eventual direito da personalidade da de cujus, notadamente pela ausência de disposição específica contrária ao acesso de seus dados digitais pela família”, diz em seu voto o relator do caso, desembargador Carlos Alberto de Salles.
No Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), a 8ª Turma Cível também garantiu a uma mãe o acesso a fotos, vídeos e conversas no celular e no relógio Apple Watch da filha morta. No acórdão, os desembargadores destacam o valor sentimental das informações e a importância da discussão.
Mas quando pesa mais o direito de personalidade, os herdeiros não têm conseguido acesso às contas digitais do morto.
“Nesses casos em que envolve a imagem e reputação, o Judiciário tem sido mais cauteloso e resistente, a não ser que haja evidência forte de que aquilo era vontade do falecido”, afirma a advogada Patrícia Peck. Ao contrário de quando é demonstrado o interesse econômico.
Cresce o número de testamentos
Nos cartórios, o que se verifica é um aumento do número de testamentos em geral. Segundo dados do Colégio Notarial do Brasil (CNB), houve uma alta de 15,4% de 2019 para 2023. Para o vice-presidente do CNB-SP, Andrey Guimarães, o tema deixou de ser tabu.
“Parte da vivência no mundo hoje é digital, onde ocorrem as relações, manifestações de pensamento e ações financeiras. Então o tema ganhou relevância e as pessoas começaram a perceber a importância de se estabelecer regras e evitar litígios”, diz.
Ele também cita as “diretrizes antecipadas de vontade”, que podem produzir efeitos quando a pessoa ainda está em vida, mas sem condições de se manifestar, a exemplo de participar de um reality show ou por doença.
Nos dois documentos, Guimarães lembra que é possível prever os mínimos detalhes sobre como deve ser — ou não — a gestão dos bens digitais. “Às vezes, a pessoa pode ter receio de autorizar acesso a caixa de e-mails ou redes sociais, porque ali podem ter informações que não quer que os herdeiros vejam”, diz.
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