“Não podemos criar um medo de medicamentos”, diz neurologista
Neurologista Ramon D'Ângelo Dias ressalta que os remédios têm importante papel dentro do tratamento das dores no Brasil
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Como já dizia o médico e físico suíço Paracelso, no século 16: “A diferença entre o remédio e o veneno está na dose”. E não é diferente nos dias atuais. Segundo os médicos, os medicamentos não podem ser tratados como vilões.
“Apesar de todas as possibilidades de efeitos adversos e riscos quanto ao uso de determinados remédios, temos de ter muito cuidado para não criarmos uma aversão e um medo irracional quanto à utilização de medicamentos”, afirma o neurologista e especialista em dor crônica Ramon D'Ângelo Dias.
O médico ressalta que as medicações têm importante papel dentro do tratamento das dores. “O que ocorre hoje no Brasil é um subtratamento ou até um tratamento 'errado' das dores. E a automedicação contribui justamente para este 'erro' no tratamento”, aponta.
Ramon ressalta que existe uma necessidade de utilização racional das medicações, que se baseia no diagnóstico correto da doença apresentada pelo paciente, na escolha individualizada do melhor remédio (considerando o perfil do paciente) e determinando um plano terapêutico.
“Este plano terapêutico deve ser claro e objetivo, buscando determinar quando iniciar uma medicação, quando trocar ou associar outros medicamentos e, principalmente, quando retirar os remédios”, ressalta.
Para a psiquiatra e presidente da Associação Psiquiátrica do Espírito Santo, Lícia Colodete, é possível, sempre quando bem indicados, conciliar o uso responsável e saudável de medicamentos para dor e insônia sem que haja dependência.
Presidente da Associação Brasileira de Medicina do Sono do Estado, a pneumologista Jessica Polese ressalta que nos casos de pacientes com real dificuldade para dormir, é melhor usar o medicamento do que deixar essa pessoa sem conseguir dormir.
“O desgaste e o estresse são muito maiores. Tentamos tudo que podemos de maneira comportamental, antes de indicar uma medicação, como organização do espaço, higiene do sono, acupuntura, massagem relaxante, meditação e o que der para ser feito sem ser medicamento. Hoje o padrão ouro chama-se terapia cognitivo comportamental, que é um acompanhamento com psicólogo”, destaca a médica.
Mais de 200 casos de intoxicação
O Espírito Santo registrou, no ano passado, 207 casos de intoxicação por automedicação no Estado, segundo dados do Centro de Informação e Assistência Toxicológica (Ciatox).
Para o psiquiatra Anderson Dondoni Lovatti, esse número pode ser ainda maior.
“Provavelmente, temos pacientes que tiveram algum tipo de intoxicação por medicamentos, mas não se tornaram números em relação ao Ciatox. É provável que exista uma falta de notificação desses casos, sendo o número bem maior do que o relatado. Isso preocupa a classe médica”, destaca o psiquiatra.
De acordo com Anderson, o acesso aos médicos aumentou muito, tanto nos prontos-socorros quanto nas unidades de pronto atendimento. “Muitas vezes, o paciente procura esse local para conseguir uma receita mais fácil, já que nesses lugares os médicos têm uma demanda de atendimento muito grande”.
O farmacêutico Silvio Louzada, do grupo técnico do Conselho Regional de Farmácia do Estado, destaca que as farmácias só podem vender medicamentos controlados mediante apresentação de receita controlada válida, prescrita por médico, veterinário ou dentista, conforme portaria 344/98.
“Observamos um grande crescimento na venda de remédios para dor, dormir e também para ansiedade e depressão. As pessoas procuram muito comprar sem receita e eu nego a venda”.
A farmácia que vender remédio controlado sem prescrição, segundo ressalta Silvio, pode responder criminalmente.
Cerca de 90% dos brasileiros praticam a automedicação
O número de pessoas que se automedicam no Brasil é de 89%, de acordo com pesquisa feita pelo Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico (ICTQ), em 2022.
Os principais medicamentos usados por conta própria são analgésicos (64%); antigripais (47%) e relaxantes musculares (35%). Sintomas como ansiedade, estresse e insônia também são motivos para automedicação em, pelo menos, 6% da população.
“Toda automedicação é perigosa. Qualquer medicação, mesmo que para dor de cabeça, tem efeitos colaterais, uma dose tóxica, e nem sempre pode ser utilizada para qualquer paciente. Com isso, é fundamental que qualquer medicação seja prescrita por um médico, após avaliação adequada do paciente”, alerta a anestesiologista Diná Mie Hatanaka, coordenadora do Serviço de anestesia do Hospital Moriah.
Já para a farmacêutica do hospital Daniela Guimarães de Oliveira Martins, se o medicamento já for um conhecido pelo paciente, anteriormente prescrito, e ele sabe como o corpo funciona, o remédio pode ser administrado sem maiores preocupações.
“Porém, se as dores forem diferentes e estiverem mais fortes do que já se conhece, não devemos trocar a medicação ou aumentar a dose sem as devidas orientações”.
Internet
Outro dado que chama atenção é que 47% da população buscam indicação de medicamentos em sites como o Google e 21% confiam na indicação de medicamentos pelas redes sociais, segundo o levantamento.
O psiquiatra Caio Gibaile alerta que, apesar de permitir que mais pessoas tenham acesso à informação por causa da internet, já viu criadores de conteúdo “romantizando” sua relação com, por exemplo, o Rivotril. “Isso reduz na população a percepção de risco relacionada ao medicamento e favorece a experimentação indevida desses medicamentos”.
Para a anestesiologista Diná Hatanaka, “se usada da forma correta, a internet poderia inclusive educar e prevenir as pessoas a respeito do uso abusivo de analgésicos e outras medicações controladas”.
Os números
- 90% dos brasileiros se automedicam;
- 64% usam analgésicos por conta própria;
- 47% da população buscam indicação na internet.
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