Os políticos e as metáforas
Coluna foi publicada no domingo (1º)
Políticos adoram metáforas esportivas. Time afinado, batendo um bolão e respeitando as quatro linhas são imagens que facilitam a comunicação, pois todo mundo acha que entende de futebol neste País. Problemas aparecem, porém, quando dirigentes não aceitam uma regra básica do futebol e da política: quem perde tem de aceitar a derrota.
A tradição americana era de respeito às regras eleitorais, por mais bizarras que fossem. O Colégio Eleitoral, por exemplo, foi inúmeras vezes contestado, mas invariavelmente respeitado. Foi o caso nas eleições em que Andrew Jackson, Samuel Tilden, Grover Cleveland, Al Gore e Hillary Clinton obtiveram maior número de votos nacionalmente, mas perderam na contagem estadual. Todos admitiram a derrota e saíram de cena.
Trump não teve o mesmo comportamento em 2020. Ao invés de reconhecer-se derrotado, insurgiu-se contra “o sistema”, que teria manipulado as eleições. Apesar de nunca apresentar prova alguma, induziu seus apoiadores a invadir o Capitólio, em Washington, para impedir a realização da cerimônia em que que Joe Biden foi declarado o 46º presidente americano.
A invasão do Capitólio ocorreu em 6 de janeiro de 2021. Dois anos e dois dias mais tarde, as sedes do Executivo,do Legislativo e do Judiciário seriam depredadas em Brasília.
Seguindo o figurino, os perdedores quiseram virar a mesa, invocando a vontade de Deus e alegando, sem provas, que as urnas estariam viciadas. O que fugiu ao padrão foi a reação da justiça brasileira. Hoje, enquanto Trump concorre a mais uma eleição, Bolsonaro foi desqualificado das próximas, em virtude da lei. Gol nosso.
A vida continua, e o que acontece lá continua repercutindo aqui. Nos EUA, os analistas já começaram a construir cenários, antecipando o que acontecerá após as eleições de novembro. Admitem, em geral, que a transição deverá ser mais tranquila se os Democratas perderem as eleições; alertam, porém, que a longo prazo, um novo mandato de Trump poderá ter um impacto nocivo e profundo nas instituições americanas.
Num vídeo que circula na internet, Trump promete, candidamente, que dentro de quatro anos os seus eleitores não precisarão mais votar. Mera bravata? Pode ser, só que é muito na linha do que a Heritage Foundation propõe no Projeto 2025, que detalha uma sequência de medidas para “devolver” a religião às escolas e repartições públicas, desmantelar os atuais ministérios e agências governamentais, despedir funcionários, desmantelar políticas sociais e concentrar o poder nas mãos do presidente.
A Heritage é muito ligada ao Partido Republicano. Como era de se esperar, os Democratas vêm dissecando as propostas do Projeto 2025 na campanha presidencial. Equiparam-nas a um plano nacionalista-cristão de transformar os Estados Unidos numa autocracia.
Argumentam que elas não se coadunam com o estado de direito, nem com a separação entre estado e igreja.
Sabemos que os ensinamentos de Cristo são perfeitamente compatíveis com a democracia. Tampouco se admite que o estado de direito se submeta a um indefinido “sistema”. A ideia de que interesses ocultos impediriam a vontade popular de se manifestar é digna de um Jânio Quadros em agudo ápice etílico.
Por sua vez, a regra bíblica, contida em Mateus 22:21, é não misturar os assuntos políticos com os religiosos. A laicidade do estado assegura que as leis resultem da escolha popular pelo voto, e não da interpretação que aiatolás possam fazer da revelação divina.
Confundir a palavra de Deus com os interesses de um político afronta a religião, além de ensejar ridicularias como a protagonizada, há alguns dias, pelo (ainda) presidente venezuelano.
Instado a justificar a falta dos boletins eleitorais, Maduro teve o desplante de invocar o evangelho segundo João, 20:27-29, na passagem sobre São Tomé: “Pare de duvidar e creia”. Para voltar às metáforas futebolistas, Maduro, mais uma vez, pisou na bola.
Ao aproximar-se o 7 de setembro, formulo votos de que Maduros e outros perdedores desistam de suas teimosias deletérias e abram espaço para o fortalecimento da paz e da democracia em todo o mundo.
- José Vicente de Sá Pimentel, nascido em Vitória, é embaixador aposentado