O Itamaraty e a Venezuela
Coluna foi publicada no domingo (18)
Meu primeiro chefe no Itamaraty foi o embaixador Espedito Resende. Piauiense de Piripiri, tinha sólida cultura jurídica e convicções políticas de direita, mas era sobretudo um democrata, aberto ao contraditório.
Um de seus amigos era o embaixador Ítalo Zappa, talvez o principal articulador do reconhecimento diplomático da China, Angola e Moçambique, por essa e outras reconhecido como um homem de esquerda. Falava com orgulho de Barra do Piraí, cidade que acolheu sua família, oriunda da Calábria.
Quando vinha conversar com Espedito, parava para me perguntar sobre Vila Velha, dizendo, com ar conspiratório e um sorriso no canto da boca, que precisávamos unir-nos contra os paulistas e cariocas, preponderantes na Casa.
Zappa era magro, baixo, fumante inveterado de cigarros japoneses, espirituoso, frasista inspirado. Nas conversas, aproveitava qualquer oportunidade para ironizar Juracy Magalhães e a ideia de que o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil. “O que é bom para mim é o que é bom para o Brasil”, dizia, e Espedito concordava, com sua risada de Papai Noel.
Domingo passado, Elio Gaspari recordou episódio em que um jornalista, referindo-se a uma controvérsia diplomática, perguntou a Zappa quem tinha vencido. A resposta foi que “ganhar ou perder é coisa de militar. Diplomata é um funcionário encarregado de defender os interesses do Estado. Se o interesse brasileiro foi preservado, e a outra parte disser que ganhou, o diplomata finge que concorda e sai de cena”. Esse posicionamento faz parte da cultura do Itamaraty, e é oportuno refletir sobre ele quando nos deparamos com o vespeiro em que se transformou a questão venezuelana.
Comecemos pelos antecedentes. Nicolás Maduro assumiu a presidência em 2013 e, desde então, seu desempenho é controverso. Por considerar a Venezuela uma ameaça à segurança nacional, os Estados Unidos impuseram-lhe sanções econômicas, mantidas desde 2015.
O governo Bolsonaro, contrariando a tradição diplomática brasileira, retirou nosso embaixador de Caracas em 2020. O atual governo, recuperando a nossa tradição diplomática, reabriu a embaixada em 2023 e engajou-se, junto com outros países, em negociações que desaguaram no Acordo de Barbados, assinado pela oposição e pelo governo venezuelano em 17 de outubro de 2023.
Na ocasião, Nota do Itamaraty assinalou que os entendimentos tinham via dupla, de um lado a realização de eleições livres na Venezuela, do outro o levantamento das sanções impostas pelos Estados Unidos.
Assim, Maduro ganhou uma oportunidade para reconstruir sua imagem. Começou a desperdiçá-la, porém, ao cometer seguidas arbitrariedades durante a campanha eleitoral.
Chegou a impugnar a candidatura de sua principal concorrente, Maria Corina Machado, que a oposição teve de substituir por outro candidato. O Itamaraty, pragmático, não censurou o procedimento, apenas definiu duas premissas para a aceitação dos resultados eleitorais: divulgação dos boletins desagregados por mesa de votação e respeito à vontade popular expressa nos votos.
As eleições foram realizadas em 28 de julho. O Conselho Eleitoral não divulgou as atas até hoje, mas Maduro pronunciou-se vencedor assim mesmo. Por sua vez, os oposicionistas obtiveram cópias de 80% dos boletins, segundo os quais quem venceu foram eles.
Impasse total. Protestos de países vizinhos ganham volume, sem, todavia, abalar a disposição de Maduro e de seus generais para permanecer no Palácio Miraflores.
É real o perigo de que a Venezuela evolua para um modelo fechado à la Nicarágua de Ortega, e não é impossível a eclosão de uma guerra civil no país vizinho. O interesse brasileiro é evitar ambas essas hipóteses, por isso precisamos manter canais de diálogo com a sociedade e com o governo, com equilíbrio.
Cabe envolver no processo parceiros regionais capazes de contribuir positivamente, sabendo que os encaminhamentos fundamentais dependerão da sociedade venezuelana. Tampouco nos convém a instalação em nossas fronteiras de um entrevero entre Estados Unidos e China ou qualquer outro país, portanto é necessário conversar com os americanos e também com os parceiros do BRICS. Tudo isso com discrição, não é o apito que põe o trem em movimento.