Atualidade e dores de habitar um corpo
Aceitar a imperfeição do corpo é caminho para o bem-estar e a autenticidade
                            
    
    
        
    
    
	
Habitar um corpo que envelhece, adoece e morre – e saber disso. Uma das sentenças de infelicidade estrutural que Freud descreveu em 1930 torna-se ainda mais potente e dramática nesta atualidade de idealizações urdidas no mercado da deificação do humano. Medir-se com régua da perfeição e alienar-se da condição de imperfeitos, tanto por natureza quanto por subjetivação, impõe um alto preço ao psiquismo, com doses extras de sofrimento para corpo e alma.
Não temos um corpo; habitamos um corpo. A diferença relativamente às demais espécies animais é que elas caminham rumo à morte sem se pensar, sem a necessidade de se darem conta de existir numa corporeidade.
Aos humanos, apresentam-se as demandas de aprender a conhecer, experimentar e nomear o corpo, criando-se uma ficção de como somos, escrita a partir do olhar alheio que nos banha e, também, de como, tendo aprendido a olhar um corpo, olhamo-nos a nós mesmos.
Nesse processo, o dar-se a ver e o ver forjam uma ânsia de corresponder ao ideal que se imagina que o outro tenha elaborado sobre nós. A incorporação do desejo do outro molda nosso ser, inclusive uma ilusória forma de corpo.
Esse saber-se corpóreo consolida-se especialmente pela narrativa sobre os corpos – aquelas que vieram antes de nós, aquela que assumimos e tantas outras que se inventarão no futuro.
Ocorre que nunca o que vemos ou apalavramos sobre nós coincide com o real do corpo. Essa imprecisão simbólica é fonte de angústia a todo vivente.
No terreno fértil desse desencontro estrutural entre corpo e imagem de corpo, ainda adubado pela consciência da decrepitude fatal e pela vontade de corresponder a um ideal de ser diante do outro, floresce a esperança da perfeição e todos os seus males.
Numa era de avanços de técnicas de “harmonização” de corpos e num tempo em que existir é alucinadamente produzir imagem midiatizada de si, as dores de habitar um corpo são ainda mais excruciantes, produzindo um cenário de aberrações e adoecimentos.
Há rostos deformados orgulhosamente apresentados como “harmonizados”. O transtorno dismórfico corporal endêmico enseja compulsão de intervenção, gerando mal-estar sem fim.
Na saga da insatisfação perene, incrementam-se os males da neurose (angústias, pânicos, melancolias, depressões...). Em labirinto ansiogênico, priorizam-se laços informacionais diante do horror de coexistir em presença não filtrada.
Como bem disse Freud, as contingências do existir não nos podem fazer tombar sem resistências à pulsão de morte. Mas o caminho para fazer prevalecer a pulsão de vida não pode ser o da negação e/ou da idealização.
Apaziguarmo-nos com nosso corpo e sua contingência imperfeita e mortal. Abandonar ilusórios ideais perfeccionistas, tentando-se agradar a não sei quem e a todos...
Essas são algumas alternativas para vivermos com algum bem-estar a fantástica aventura de existir num corpo, de viajar no tempo a bordo de um corpo, fonte de dor e de angústias, sim, mas território de prazeres inomináveis e possibilidades além das prescrições – lugar de invenção de si, ponto de encontro com o outro.
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