“Uma pessoa que lê é alguém mais interessante”, diz escritora Raquel Alves
Filha do escritor Rubem Alves fala sobre a importância de adultos serem referência em relação aos hábitos de leitura
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Filha do renomado psicanalista, escritor, educador e teólogo Rubem Alves, a palestrante e escritora infantil Raquel Alves visitou a Escola Americana de Vitória na última semana para conversar com alunos e familiares.
No local, ela realizou a palestra “O Despertar de um Olhar”, onde fez uma análise sensível e profunda sobre a vida.
A Tribuna esteve presente na ocasião e teve um bate-papo com a autora, que comentou sobre seu pai (que morreu em 2014), memórias queridas, os benefícios de ler e também profissionais da escrita que admira.
Raquel, que tem deficiência visual e inspira leitores com seu trabalho, afirmou que uma pessoa que lê é alguém mais interessante e ainda apontou a importância de adultos serem referência para os mais jovens em relação aos hábitos de leitura.
A Tribuna - Na palestra “O Despertar de um Olhar” você abordou sobre como o seu nascimento impactou a vida de seu pai, Rubem Alves. Poderia explicar?
Raquel Alves - Sou de uma época em que o ultrassom não trazia todas as informações como existe hoje. Meus pais foram pegos de surpresa em relação ao meu lábio leporino. Não sabiam o que era isso e nem como tratar. Meu pai não sabia se eu sobreviveria ao impacto da cirurgia que deveria ser feita. Nisso, ele pensou muito e entendeu que eu teria que lutar para viver. Que eu teria dores emocionais por conta de bullying.
E ele me ajudou nessa luta. Entendeu naquele momento que tinha que colocar em mim a beleza da vida para eu desejar viver. E decidiu que mudaria o jeito de escrever. Ele já era escritor, mas era um escritor acadêmico. O mundo acadêmico tem muito fundamento e importância, mas ele não toca o coração de ninguém. Tem um outro papel.
Para tocar o coração das pessoas, no caso, o meu, meu pai teria que tirar as coisas do coração dele.
E como foi a mudança na escrita dele?
Na medida que comecei a crescer e que as dores começaram a chegar, meu pai passou a escrever histórias infantis para me ajudar. Histórias totalmente conectadas com os desafios que eu estava enfrentando. Foi a partir dessa mudança do jeito de escrever que ele se tornou esse escritor e educador conhecido e amado no Brasil.
Você também abordou na palestra sobre o impacto que a morte de seu pai teve em sua vida. Pode contar para nós a respeito disso?
Eu cresci, me graduei em Arquitetura, trabalhei na área e ele me perguntava se eu ia cuidar de seu legado. Eu falava que não era isso o que queria. Mas quando fui percebendo que ele estava envelhecendo, algo começou a mudar em mim. Como se uma voz interna dissesse: “Isso é seu. Começou com você, e você tem que continuar”.
Aquilo que eu tinha negado a vida inteira, na hora que vi que estava chegando perto de ocorrer, comecei a me aproximar. Quando meu pai efetivamente faleceu, olhei no caixão e falei que não tinha mais a Raquel arquiteta. Que eu cuidaria daquilo que ele tinha me pedido desde sempre. Deixei minha carreira e fui me aventurar em um universo desconhecido.
Naquela época, eu não sabia que ia ter deficiência visual por conta de glaucoma. Quando isso aconteceu, entendi que se eu não tivesse escutado o que a vida estava me pedindo, o que eu seria hoje? Apenas uma arquiteta sem trabalho. Mas como ouvi a vida, ela me deu um mundo novo para o qual eu não tenho limites.
Poderia compartilhar uma memória inspiradora de seu pai?
Uma que me marcou muito é quando eu tinha cinco anos de idade e estava no supermercado com ele. Eu ainda não tinha feito as cirurgias estéticas para o lábio leporino e tinha uma criança me olhando de um jeito muito cruel e fiquei intimidada.
Segurei na calça de meu pai, ele percebeu o que tinha acontecido e me perguntou qual era o problema. Falei: “Aquela menina está me olhando de um jeito estranho”, e ele perguntou: “Mas por que você acha isso?” e eu disse: “Porque eu sou esquisita”.
Ele me falou: “Então vou te ensinar um truque. Quando isso acontecer, você chega lá, se apresenta, fala seu nome e a convida para brincar”. É evidente que eu não fiz isso, mas acho que a grande marca é que meu pai nunca teve a atitude de me proteger no sentido de tirar satisfação com adultos, pais das crianças.
Ele sabia que a vida era minha e que eu tinha que desenvolver a força para enfrentar as minhas questões e entregou na minha mão as soluções dos problemas.
O que você quer passar para as crianças com as suas obras?
Quero passar que elas devem ler e descobrir o prazer pela leitura por mais que não entendam isso hoje, mas mais para frente elas vão agradecer por gostar de ler. Tem questões que só compreendemos em retrospecto, não entendemos muito bem no momento.
Um ser humano que lê é uma pessoa que pensa melhor, que tem mais criatividade, é alguém que se torna mais interessante porque tem mais assuntos para conversar, histórias para contar e é um ser humano mais conectado consigo mesmo.
Ser leitor, a médio e longo prazo, faz a gente ter mais concentração. Faz a gente não ter preguiça de pensar, ter mais conhecimento daquilo que nos faz bem.
O que quero passar para as crianças é: leiam. Descubram o prazer da leitura. É bom demais e vale a pena.
E uma questão: um livro por si só já tem um papel bacana, porque tem gosto bom, mas o que impacta muito positivamente a vida é a fluência leitora.
Como crianças e jovens podem entender o poder transformador da leitura?
O gosto pela leitura não é algo que a gente aprende só pela comunicação. Tem que ter referência, e a gente está em um universo muito permeado pelo celular e as referências que temos geralmente estão com um celular na mão.
Tanto para a criança quanto para o jovem, aquilo que fazemos está muito mais alto do que aquilo que falamos. Não adianta falarmos para a criança ou jovem para lerem e não carregarmos livros, e sim celulares. Não é uma questão de só ficar falando. Não vai funcionar, tem que dar o exemplo.
Os adultos são responsáveis por essa condução. Precisam participar do processo desde o começo, e não só sendo referência, mas também lendo para as crianças.
Além do seu pai, você tem outros escritores que admira?
Gabriel García Márquez é fantástico. Gosto muito de Noah Gordon, que escreveu “O Físico”, “O Último Judeu”, “Shaman”. Isabel Allende, autora de “A Casa dos Espíritos”. Da minha infância, tem a Ruth Rocha. E hoje eu respeito um escritor chamado Jonas Ribeiro. É um cara fascinante que tem cerca de 180 livros infantis publicados.
PERFIL
Formada em Arquitetura, Raquel Alves, 48, deixou a profissão e seguiu o legado de seu pai, Rubem Alves, que morreu em 2014. Ele é considerado um dos maiores pensadores contemporâneos da educação no Brasil.
Hoje, Raquel é palestrante e escritora de livros infantis.
Suas obras são direcionadas ao universo socioemocional, trazendo histórias divertidas e sensíveis que despertam a autoconsciência e consciência social, oferecendo possibilidades para a educação socioemocional em sala de aula.
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