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O adestramento da vida e a servidão à morte

Confira a coluna

José Antonio Martinuzzo | 17/11/2024, 14:00 h | Atualizado em 17/11/2024, 14:00

Imagem ilustrativa da imagem O adestramento da vida e a servidão à morte
José Antônio Martinuzzo é pós-doutor em Psicanálise (UERJ), doutor em Comunicação (UFF) e professor titular da Ufes |  Foto: Acervo pessoal

O indivíduo que se explodiu em praça pública já se havia dissolvido no delírio que amalgama a massa em que se engolfara. O sacrifício pessoal em favor de uma causa que transcende uma existência singular está na base da estratégia perversa que opera a constituição de grupos massivos radicais.

Muito se diz de “lobo solitário”, mas o que se tem são lobos solidários, tornados assim por manipulação de afetos como medo, amor e ódio, tudo numa só receita explosiva de manipulação com objetivos político-ideológicos extremistas.

Num cenário de sensação de desamparo e desesperança, algo característico desta nossa sociedade líquida e individualista, discursos difundidos em rede cumprem o objetivo de arregimentar cabeças para a obra do ódio e extremismo.

Perseguem esse objetivo inoculando medo, criando inimigos imaginários e, ao mesmo tempo, ofertando a possibilidade de se chegar ao paraíso terreno, sob os auspícios de um líder ou mesmo de uma ideologia redentora da fragilidade e dos terrores da vida – ou seja, a vida idílica é possível como obra da massa em missão de redenção de si e da espécie.

Nesse processo, as subjetividades se dissolvem num grupo que toma a forma do amor à causa identitária que o mobiliza – e de pleno ódio aos inimigos imaginados de sua obra redentora.

O que rege a economia afetiva das massas passa longe da razoabilidade. Como bem destaca Freud, “a massa é extraordinariamente influenciável e crédula, é acrítica, o improvável não existe para ela”, acrescentando que também é “impulsiva, volúvel e excitável”. “Os sentimentos da massa são sempre muito simples e exaltados. Ela não conhece dúvida nem incerteza”, anota.

O “pai da psicanálise” segue: “inclinada a todos os extremos, a massa também é excitada apenas por estímulos desmedidos. Quem quiser influir sobre ela, não necessita medir logicamente os argumentos; deve pintar com as imagens mais fortes, exagerar e sempre repetir a mesma coisa”.

No seio de massas extremistas, bondade é sinônimo de fraqueza. Conforme Freud, “o que ela exige de seus heróis é fortaleza, até mesmo violência. Quer ser dominada e oprimida, quer temer os seus senhores. No fundo conservadora, tem profunda aversão a todos os progressos e inovações, e ilimitada reverência pela tradição”.

A manipulação das massas se dá em torno da oferta de um “pai” substituto que, com força, coragem e doação da sua vida, seria capaz de restituir um tempo de paz e estabilidade que se teria perdido por corrupção de inimigos da existência paradisíaca em plena Terra.

Guiados por esses ideais ilusórios, os indivíduos identificam seus egos ao ego da massa, onipotente, onisciente e onipresentemente paranoica. Imolar-se pela causa não é só uma alternativa, mas um dever deste que já não se percebe para além do mundo fantasmático em que mergulhou. Sua vida não vale nada se não valer pela causa, que se tornou a própria razão de existir. Uma trágica realidade que passa a compor a nossa história nacional, sombreada pelo extremismo radical que submete a vida aos ditames da instrumentalização da violência – e da morte.

JOSÉ ANTONIO MARTINUZZO é pós-doutor em Psicanálise (UERJ), doutor em Comunicação (UFF) e professor titular na Ufes

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