O discurso na ONU
Coluna foi publicada no domingo (29)
Desde 1949, cabe ao Brasil o discurso inaugural no Debate Geral que abre a Assembleia Geral das Nações Unidas. Não se conhece o motivo da escolha. A escolha dos EUA desagradaria a URSS, e vice-versa, mas por que o Brasil? Talvez houvesse a intenção de suavizar o desapontamento brasileiro pela não inclusão entre os membros permanentes do Conselho de Segurança, como nos havia sido sugerido nas negociações de Dumbarton Oaks.
O fato é que, desde aquela data, em todo mês de julho o Secretário-Geral da ONU dirige um ofício ao Chefe da Missão do Brasil em Nova York, perguntando se o Brasil deseja ser o primeiro orador. É uma honra e uma oportunidade, que sempre aproveitamos, para fazer uma exposição abrangente, baseada na visão brasileira da realidade internacional.
Desde que entrei no Itamaraty, fascinou-me o rigor com que o discurso era preparado. Numa verdadeira linha de montagem, as Divisões políticas, econômicas, consulares e administrativas redigiam os textos iniciais, que eram peneirados nas respectivas Secretarias, coligidos e desbastados na Secretaria-Geral e só então, depois de uns dois meses de correções, submetida ao Gabinete do Ministro, para a forma final e o encaminhamento à Presidência da República.
O apuro na confecção torna esses discursos uma das mais valiosas fontes primárias para análises da política externa brasileira. Os meios acadêmicos sempre lhes dedicaram atenção, hoje compartilhada pela imprensa e mídias sociais. Trata-se de uma evolução natural e até bem-vinda; em benefício da opinião pública, vale, porém, um alerta.
Raramente um texto político será interpretado com o rigor de uma equação matemática. Ao contrário das leituras científicas, mesmo os mais notáveis discursos históricos serão avaliados de acordo com os caprichos e as tendências culturais e ideológicas dos leitores.
Na minha leitura, os discursos brasileiros na ONU sempre demonstraram, pelo menos até o governo Bolsonaro, uma notável coerência. As circunstâncias mudavam, visões otimistas e pessimistas se alternavam, mas sempre defendemos a consolidação da ONU para assegurar legitimidade na condução dos grandes temas políticos, econômicos e sociais da agenda mundial, e sempre advogamos aperfeiçoamentos nos métodos onusianos de trabalho, entre os quais a reforma do Conselho de Segurança, que é o órgão encarregado pela Carta de São Francisco de assegurar a paz e a segurança internacionais.
Outros temas recorrentes nos nossos discursos são a relevância do multilteralismo como ferramenta da democracia, dos direitos humanos e do desenvolvimento com justiça social; a necessidade de uma solução para o conflito no Oriente Médio que consagre a efetiva institucionalização do Estado Palestino e, ainda, uma crescente singularização da América do Sul como espaço político de integração. Desde o ano passado, nossos textos voltaram a defender, com muita força, medidas urgentes para a proteção do meio ambiente.
Todos esses assuntos estão presentes no discurso proferido no corrente ano. Alguns críticos poderão reclamar das ênfases concedidas às guerras na Ucrânia e no Oriente Médio, sem levar em conta que Netanyahu e Zelensky não mudarão de atitude antes de conhecerem os resultados da eleição presidencial nos Estados Unidos. Outros lamentarão a falta de um pronunciamento assertivo sobre o Consenso na América do Sul, mas as circunstâncias sugerem que, no momento, seria contraproducente repreender publicamente Maduro, e não faz sentido falar em integração diante de um desagregador juramentado do porte de Milei.
Eu, sinceramente, gostei do discurso e, em particular, da ênfase no meio ambiente. A qualidade de vida, e a própria preservação da vida no planeta, são o grande tema do século, aquele em que o Brasil é um interlocutor indispensável e que deverá marcar nossa participação nas presidências do G20, a partir de dezembro, bem como do BRICS e da COP 30, em 2025.
As queimadas na Amazônia e no resto do país, antes de limitar a legitimidade do discurso, reforçam a sua pertinência como prioridade diplomática.