O declínio do império
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Pouca gente hoje em dia sabe o que foi o Império Otomano. No entanto, esse vastíssimo império, que cobria partes da Europa, Ásia e África, foi durante seis séculos um ator de primeira grandeza nas relações internacionais.
Não serão muitos, tampouco, os bem informados sobre o Império Austro-Húngaro, que congregou, Alemanha, Itália, Polônia, além da Áustria e da Hungria e vários outros países, de meados do século XIX até princípios do XX. Esses dois impérios foram atropelados pela Primeira Guerra Mundial e desmembrados a partir de então.
Por sua vez, a Segunda Grande Guerra determinou o fim de um outro ilustre e hoje mal conhecido império, o Britânico, substituído ao longo do século passado pela astuta contrafação da Commonwealth of Nations.
Sabemos pouco, porque ao longo do tempo assuntos mais urgentes ocuparam nossa atenção. É assim mesmo, umas civilizações regridem, perdem a primazia no concerto das nações, convertem-se em outras entidades, a gente esquece delas. A história ensina que só o que não muda é a própria mudança.
Cabe aos cientistas políticos, aos diplomatas, além dos videntes, identificar indicações de que há mudanças no horizonte e é melhor se preparar para elas.
Identifico na possível vitória de Donald Trump nas eleições de 5 de novembro sinais de que os Estados Unidos, única nação de nossos dias com dimensões semelhantes às de um império, pode entrar em franca decadência. Não seria nada imediato; a decadência viria aos poucos, acompanhada de crises e mal-estar internacional progressivo.
É claro que previsões sobre o declínio americano vêm sendo feitas há bastante tempo por cientistas políticos em busca de fama ou da venda de livros. As profecias são logo abafadas por vozes acauteladoras: não seria bem assim, a economia americana é resiliente e criativa, resistirá aos desafios.
Pode ser, mas no meu entendimento, agora o perigo vem de dentro, como o próprio Trump diz, só que em outro contexto.
No caminho para a excelência, os Estados Unidos seguiram uma tradição cultural alicerçada na livre iniciativa, de um lado e, de outro, na democracia. Uma contrabalança a outra, são faces da mesma moeda.
A liberdade individual para empreender é incentivada, a redução de óbices burocráticos é essencial para o êxito do sistema, mas o respeito à lei, à ordem e à meritocracia são os deveres que equilibram os direitos. Trump rompe o equilíbrio. Coloca-se acima das regras e do bom senso. Não admite limites ao seu poder.
Em política externa, um segundo mandato poderia significar o fim às estruturas multilaterais erguidas após a Segunda Grande Guerra, seguindo a liderança dos próprios Estados Unidos, e que bem ou mal vem mantendo o mundo sem guerras totais desde 1945. Ele já se chocou com a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), e o que poderia fazer caso voltasse à Casa Branca deve estar deixando os europeus desde já com o cabelo em pé.
Promete impor altas barreiras tarifárias às importações provenientes da China e de outros países, inclusive do Brasil. Trump não ouve assessores, quer negociar diretamente com a China, como se Xi Jinping fosse mais um funcionário corruptível de um condado da Flórida. Declara aberta simpatia por Putin, que retribui, interferindo nos assuntos eleitorais americanos.
No debate com Kamala Harris, declarou grande admiração por Viktor Orban, autocrata húngaro de extrema-direita. Desdenha dos direitos humanos, e é tão contrário à proteção do meio ambiente que inventou uma patacoada absurda sobre os “efeitos cancerígenos” dos aerogeradores de energia eólica.
Em muitos sentidos, Trump personifica o antiamericanismo. Quer validar a truculência, em prejuízo da diplomacia. Pretende subordinar a imensa capacidade militar americana aos seus caprichos pessoais, ao escolher para os cargos mais altos da área da Defesa somente aqueles que seguirão suas ordens, como “os generais de Hitler”.
As turbulências serão, previsivelmente, fortes e constantes, razão pela qual a comunidade internacional procurará se proteger e, ao invés de trabalhar com os Estados Unidos, passará a trabalhar contra. É difícil imaginar que mesmo um país tão poderoso possa enfrentar tantos obstáculos e permanecer ileso.
Denys Arcand dirigiu um ótimo filme, intitulado “Le déclin de l'empire américain”. Às vésperas do 5 de novembro, esse título parece premonitório.
JOSÉ VICENTE DE SÁ PIMENTEL é nascido em Vitória, é embaixador aposentado