Às vésperas da incerteza
Coluna foi publicada no domingo (23)
“Foi o melhor dos mundos, foi o pior dos tempos, foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice, foi a época da fé, foi a época da incredulidade, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, íamos todos direto para o céu, íamos todos direto para o outro lado”. Na famosa abertura de “Um conto de duas cidades”, Dickens parecia antever o mundo em que vivemos.
Supunha-se que o fim da Guerra Fria e a dissolução da União Soviética assentariam a paz e confirmariam a vitória da democracia, valor máximo da potência vencedora. Presumia-se que determinariam também o fim das armas atômicas, e permitiriam avanços da humanidade em direção aos valores definidos, por consenso, nas conferências da ONU sobre direitos humanos, meio ambiente, população e desenvolvimento, entre outras.
Com a luxuosa ajuda da revolução tecnológica, sobretudo nas comunicações e nos transportes, tudo parecia favorecer uma nova era de paz e progresso em todos os campos de atividade humana.
O homem propõe, Deus dispõe. Apesar de serem os atores da história, os homens somente são capazes de agir dentro dos limites que a realidade impõe. E a realidade, como sabemos, não tem sido tão risonha. As Nações Unidas, cuja legitimidade depende da vontade de seus membros, é insuficiente para manter a paz, razão primordial para que foi criada.
O Papa Francisco tem razão ao dizer que já estamos vivendo uma guerra mundial em pedacinhos, e a visita de Putin à Coreia do Norte causa receios de que um novo e perigosíssimo pedacinho esteja sendo criada em uma das áreas militarmente mais sensíveis do globo.
Por sua vez, a democracia encara desafios crescentes, alguns dos quais se apresentam no próximo mês. Em 30 de junho e 7 de julho, os franceses irão às urnas e poderão optar pelo que seria uma espécie de volta ao regime implantado, durante a Segunda Grande Guerra, na colaboração com os invasores alemães.
É certo, como dizia Marx no início de “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, que os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa. Mas uma farsesca vitória da extrema-direita na França em 30 de junho seria potencializada e promovida à condição de tragédia pela eleição de Trump nas eleições americanas de novembro.
Um ingrediente importante do resultado eleitoral americano será o veredito que o juiz Juan Merchan deverá anunciar às 10 horas do dia 11 de julho próximo sobre as acusações que pesam sobre o ex-presidente americano de falsificação de documentos, no escândalo sexual envolvendo uma atriz pornô.
Diante dessas datas preocupantes, o filósofo Slavoj Zizek faz uma reflexão a meu ver pertinente, num artigo intitulado “O espectro do neofascismo está assombrando a Europa”. Segundo ele, o maior perigo de nossos dias decorre da tendência de políticos europeus para acomodar a extrema-direita, abandonando a palavra de ordem da resistência ao regime de Vichy, que era: nenhuma colaboração com os fascistas.
Ressalta Zizek que a mensagem transmitida pelos contemporizadores é que “tudo bem, Marine Le Pen, Giorgia Meloni e o AfD alemão, às vezes, flertam com posições fascistas, mas não há motivo para pânico, pois eles respeitarão as regras e as instituições democráticas quando alcançarem o poder”.
Ocorre que o debate atual não é mais entre a esquerda e uma direita moderada, e sim entre a direita convencional de Ursula von der Leyen e a direita neofascista de Le Pen, Meloni e Maximilian Krah. Sendo assim, esbraveja Zizek, não se pode pensar em diálogo equilibrado, porque a balança pendeu demasiado para a direita.
Zizek é provocador e às vezes paradoxal. Costuma dizer, por exemplo, que Trump seria “uma benção”, porque defende políticas tão horríveis, que acabará despertando reações em sentido contrário de democratas hoje apáticos. Pode ser, mas eu sou das antigas e prefiro dizer não à colaboração com fascistas europeus, americanos ou de qualquer outra nacionalidade.